sábado, 5 de agosto de 2017

O VALE DOS FETOS

 
 
O VALE DOS FETOS

Quando somos pequenos, o tempo é enorme. Os anos 80 tiveram, aliás, os verões mais longos desde que há registo. São dados de autoridades variadas, NASA inclusive. Foi um fenómeno único e irrepetível posto que entre o final das aulas e o seu recomeço passavam mais de três meses mas, subjectivamente, passavam aí uns três anos. Quando somos pequenos, o tempo conta-se como o dos cães, cada ano vale aí por uns sete e cada mês por quase um ano. Tudo é gigante mas tudo gira à nossa volta, até a lua nos persegue quando vamos sentados no banco de trás do carro. Somos o centro central centrão mindinho desse universo colossal. Não há memória de uns verões tão intermináveis, tenho dito. Nos anos 90 já não foram tão grandes e, depois de chegar o século XXI, quase desapareceram e parecem mesmo em vias de extinção. Factos confirmados por instituições.
Nos anos 80, em Setembro, depois da época de praia íamos ao Luso, para uma pequena casa já na fronteira com a mata do Bussaco. A viagem desde Coimbra - onde morávamos- era curta. Até a nós parecia curta. Chegados, já não havia nada para fazer. Já tinha passado o mundial, o rally de portugal e a volta à França em bicicleta, os jogos sem fronteiras e tudo e tudo. O televisor ficava desligado, abandonado no canto da sala, magnético de pó fino, como há quem faça à tia desmoriada e muito antiga. Já não havia praia nem os magotes de primos, esses queridos irmãos de verão e natal. Já tinham acabado os gelados da Figueira da Foz. Era Verão porque o Verão só acaba às portas de Outubro, porque a escola só recomeçava em Outubro. Era verão porque continuava calor, o cheiro a incêndio ia e vinha e as cigarras ainda enchiam o silêncio do serão. Nada a fazer. Eu e o meu irmão mais velho lá arranjávamos coragem para entrar na mata. Furávamos entre os cedros, as sequoias e os azereiros, descíamos ao vale dos fetos (nome que me ocupava nas noites demasiado quentes para adormecer) e perdíamos-nos no bosque de adernos. Era a loucura e o dia ganho se víamos pica-paus ou tritões. Nunca víamos mas inventávamos que tínhamos visto. A mentirola enchia-nos o dia duas vezes: uma porque quase acreditávamos que tínhamos mesmo topado uma águia-calçada, outra porque ainda tínhamos o frisson da peta. Quase víamos, praticamente tínhamos visto, era possível. Aí está o que era importante. A mata tinha sempre um potencial de perigo e isso é que interessava no meio daquele abafo modorrento. 
O mesmo nas raras idas à piscina olímpica do grande hotel do Luso. O espelho de água estendia-se os 50 metros de comprimento e, quando abria de manhã numa terça ou numa quarta feira de Setembro, desses verões mais longos desde que há memória, ela ficava assim quieta, imóvel, majestática, como bailarina em pose, como se tivesse congelado com 36 centígrados cá fora. Mas pouco queríamos saber disso. Corríamos para o final da pista, mais rápido do que nadaria Mark Spitz, e subíamos a escadas das pranchas. A cerimónia era sempre a mesma: primeiro a de 3 metros. Canja. Depois a de 5. Confirma. Por fim, a rainha, a prancha de 10 metros de altura. O mundo era tão grande, nós tão pequenos e aqueles 10 metros, o equivalente a um terceiro andar, pareciam um salto de um arranha céus. Mas faziam-se. Depois de uma boa meia hora lá em cima, entre o medo de saltar e o medo de descer as escadas (feitas apenas para subir), entre a excitação e a vergonha, lá se acabava por deixar o corpo tombar, primeiro olhos bem abertos e depois selados de pavor, sempre com a cabeça cheia daquela lenga lenga de "aterra de pés ", "cuidado com as chapas". Quase que acontecia. Podia ter acontecido. Isso é que interessa Depois era dia 2 de setembro, dia 3, dia 4. Ouvia -se um relógio de pé alto e pêndulo que não existia. Dia 9. Dia 11Quando a minha infância estava quase a acabar cheguei à conclusão de que estava tudo certo - assim , com esses verões distendidos, só com essas verões fenómeno, voltava e crescia a vontade de regressar à escola. Como eram sábios os crescidos e como para eles o universo era pequeno e domável. Até crianças com ganas de aprender conseguiam fabricar. E em tão pouco tempo. Dados da NASA.

A.D,

2 comentários:

  1. Que belíssimo momento querida amiga ,gostei muito da sua partilha ,desejo-lhe um fim de semana muito feliz ,beijinhos no coração.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. AMIGO EMANUEL.
      MUITO OBRIGADA ,PELA SUA VISITA.
      SEMPRE ATENTO.
      BEIJINHOS

      Eliminar