sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Falo de Ti às Pedras das Estradas


Falo de ti às pedras das estradas,
E ao sol que e louro como o teu olhar,
Falo ao rio, que desdobra a faiscar,
Vestidos de princesas e de fadas;

Falo às gaivotas de asas desdobradas,
Lembrando lenços brancos a acenar,
E aos mastros que apunhalam o luar
Na solidão das noites consteladas;

Digo os anseios, os sonhos, os desejos
Donde a tua alma, tonta de vitória,
Levanta ao céu a torre dos meus beijos!

E os meus gritos de amor, cruzando o espaço,
Sobre os brocados fúlgidos da glória,
São astros que me tombam do regaço!

Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas"
 

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O DIA DEU EM CHUVOSO!


O Dia Deu em Chuvoso

O dia deu em chuvoso. 
A manhã, contudo, esteve bastante azul. 
O dia deu em chuvoso. 
Desde manhã eu estava um pouco triste. 

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma? 
Não sei: já ao acordar estava triste. 
O dia deu em chuvoso. 

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante. 
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante. 
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante. 
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante? 
Dêem-me o céu azul e o sol visível. 
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim. 

Hoje quero só sossego. 
Até amaria o lar, desde que o não tivesse. 
Chego a ter sono de vontade de ter sossego. 
Não exageremos! 
Tenho efetivamente sono, sem explicação. 
O dia deu em chuvoso. 

Carinhos? Afetos? São memórias... 
É preciso ser-se criança para os ter... 
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro! 
O dia deu em chuvoso. 

Boca bonita da filha do caseiro, 
Polpa de fruta de um coração por comer... 
Quando foi isso? Não sei... 
No azul da manhã... 

O dia deu em chuvoso. 

Álvaro de Campos, in "Poemas" 
Heterónimo de Fernando Pessoa
 
 

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

"SEM"


" Sem... "
Vem dormir nos meus sonos
enquanto se acalma o mar.
Sinto assim um pedaço do teu amor
no fragmento imenso das noites dançarinas.
Os acordes do vento recordam-me
as noites em que esquecemos os demais,
aquelas eternas noites de portas douradas
sem o sabor amargo das palavras mudas
e da tristeza dos gestos quietos de hoje.
O tempo não teve compaixão
e o vazio das tuas sombras
desenham-se agora na cama
que um dia desejaste…
Secaram os beijos e as carícias
que galopam nos dias perdidos de ontem
e os sonhos que foram de outra cor
agora em fogo cinza,
dormem sob as pedras,
sem refúgio, sem calor
sem paixão, sem amor.
( © António Carlos Santos )
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In: Livro de poesia: "Da Geometria Do Amor"
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