sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

ENVELHECER...




Julio Machado Vaz
Envelhecer

Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o sginificado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso também é velhice. Quando já sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer... Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com exactidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreeende nem o imprevisto, nem o invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal... e isso é precisamente a velhice.

Sándor Márai, in 'As Velas Ardem Até ao Fim'

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

CORRE UM RIO SEM FIM!!!!




Entre o sono e sonho, 

Entre mim e o que em mim 
É o quem eu me suponho 
Corre um rio sem fim.



Passou por outras margens, 
Diversas mais além, 
Naquelas várias viagens 
Que todo o rio tem.



Chegou onde hoje habito 
A casa que hoje sou. 
Passa, se eu me medito; 
Se desperto, passou.



E quem me sinto e morre 
No que me liga a mim 
Dorme onde o rio corre 
Esse rio sem fim.



(Fernando Pessoa)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

ESTE AMOR INFINITO E IMACULADO!!!





Este Amor Infinito e ImaculadoQuerida, o teu viver era um letargo, 
Nenhuma aspiração te atormentava; 
Afeita já do jugo ao duro cargo, 
Teu peito nem sequer desafogava. 
Fui eu que te apontei um mundo largo 
De novas sensações; teu peito ansiava 
Ouvindo-me contar entre caricias, 
Do livre e ardente amor tantas delicias! 

Não te mentia, não. Sentiste-o, filha, 
Esse amor infinito e imaculado, 
Estrela maga que incessante brilha 
Da alma pura ao casto amor sagrado; 
Afecto nobre que jamais partilha 
O coracão de vícios ulcerado. 
Não sentes, nem recordas, já sequer? 
Quem deste amor te despenhou, mulher ? 

Eu não! Se muitos crimes me desluzem, 
Se pôde transviar-me o seu encanto, 
Ao menos uma só não me recusem, 
Uma virtude só: amar-te tanto! 
Embora injúrias contra mim se cruzem, 
Cuspindo insultos neste amor tão santo, 
Diz tu quem fui, quem sou, e se é verdade 
O opróbrio aviltador da sociedade. 

Camilo Castelo Branco, in 'Poema dedicado a Ana Plácido (1857)'

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Vens comigo?




 Vens comigo?


Vens comigo?
Temos barcos aportados
E um já a bolinar, atrevido.
Um pronto a partir, desenfreado,
Do lado do coração,
Outro, na outra banda,
Ainda preso ao cais da razão.
Mas ambos sabemos
Que já navegamos em todos,
Timidamente,
Ao mesmo tempo.
Há que tempo…
Num carrossel a medrar como silvas
Movido com beijos dos nossos.
Mesmo não percebendo a pergunta
Nem qual o destino,
Repito,
Vens comigo?
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