sexta-feira, 25 de julho de 2014

O CANSAÇO



Cansaço

O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço...

Álvaro de Campos, in "Poemas"
   

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Da Mais Alta Janela da Minha Casa''





Da Mais Alta Janela da Minha Casa''





Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a Humanidade.
E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os terá?
Quem sabe a que mãos irão?
Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

Alberto Caeiro

(heterónimo de Fernando Pessoa)

sexta-feira, 11 de julho de 2014

ATRAVESSAR CONTIGO O DESERTO.








Para Atravessar Contigo o Deserto do Mundo

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

sexta-feira, 4 de julho de 2014

LENDA DA SERRA DA ESTRELA



LENDA DA SERRA DA ESTRELA

Era uma vez um pastor que vivia com o seu rebanho numa alta serra do centro de Portugal. Como todos os pastores, fazia da solidão uma amiga. A companhia da natureza e dos animais bastavam-lhe. Há muito tempo que tinha trocado a aldeia pelos altos e grandes prados, onde sempre se tinha sentido melhor. De dia, corria e brincava com os animais e, quando já estava cansado, então via apenas. Observava a vastidão e o colorido de uma paisagem sempre a mudar,
Já lhe conhecia bem as maneiras, os sons e os cheiros. E à noite, recolhido o rebanho ainda lhe sobrava tempo para falar de tudo o que lhe apetecia com a sua grande amiga. Era mesmo grande aquela estrela que se erguia imponente e luminosa bem acima do alto da serra, rodeada por milhares de outras mais pequenas. Era a sua confidente de todas as noites. Ouvia-o sem nunca se aborrecer. E ele voltava sempre à procura daqueles momentos mágicos em que encontrava paz e entusiasmo para recomeçar um novo dia. Certa vez, chegou aos ouvidos do Rei que nas suas terras havia um pastor que falava com as estrelas e logo, por curiosidade ou inveja, o mandou chamar à sua presença, propondo-lhe que trocasse a estrela falante por uma grande riqueza. Afinal de contas, não era qualquer rei que se podia gabar de falar com uma estrela.
O pastor disse-lhe então que não trocaria a sua amiga por riqueza alguma deste mundo. Antes ser pobre e continuar feliz.
Desapontado, mas compreendendo as suas razões, o rei, mandou-o em paz.
Quando chegou à cabana no alto da serra, mal anoiteceu, foi ter com a sua amiga estrela e, dessa vez, foi ela a confessar-lhe os seus receios. Entoando uma doce melodia, disse-lhe que, por momentos, chegou a pensar que ele a tivesse trocado pelo dinheiro do poderoso rei. Foi a vez do pastor a sossegar, dizendo-lhe que a sua amizade era para ele a mais preciosa das coisas e, em alta e profética voz, deu o seu nome àquela que era também a sua serra: Serra da Estrela.
Ainda hoje se diz que na Serra, uma estrela diferente das outras brilha à procura do seu pastor.

Publicada por Helena
LENDAS DE PORTUGAL